Por Artur Voltolini, do Observatório de Favelas – reproduzido do blog Fazendo Media: a média que a mídia faz, de 02/09/2013
A OAB/RJ lançou no dia 27 deste mês a campanha “Desaparecidos da Democracia”, em que divulga o resultado da pesquisa comandada pelo sociólogo Michel Misse, da UFRJ, cujos resultados mostram que mais de dez mil pessoas foram mortas sob suspeita de confronto com a polícia fluminense entre os anos de 2001 e 2011. O objetivo da campanha é pressionar o Estado a divulgar os dados sobre essas mortes para que seja formado um banco de dados com todas as informações, desde o nome dos policiais envolvidos até depoimentos de parentes das vítimas. Esses dados serão analisados por uma equipe multidisciplinar para posteriormente criar propostas para definir os protocolos de ação policial, melhorar o sistema de Justiça Criminal e, com isso, fortalecer a democracia.
Segundo Michel Misse, a polícia fluminense mata mais do que a de muitos países. Nos Estados Unidos, onde a polícia é conhecida pela truculência, são mortos anualmente em confronto uma média de 300 pessoas para uma população de aproximadamente 314 milhões (uma morte para cada 1.050.000 pessoas). Já no Rio de Janeiro são mil mortes para 16 milhões de habitantes (uma morte para cada 16.000 pessoas). Misse afirma que nem mesmo em outros países latino-americanos com violento histórico de guerras civis e tráfico de drogas, como Colômbia e México, isso ocorre. Para o sociólogo, a falta de indignação da sociedade frente a esse quadro causa tanta preocupação quanto os próprios dados.
O Superintendente Estadual de Igualdade Racial, Marcelo Dias, disse que o resultado da pesquisa aponta para o racismo existente no Brasil, já que a maior parte dos mortos em suspeita de confronto com a polícia e os desaparecidos é composta de negros, jovens e pobres. “Hoje como a PM faz o que fez [contra os manifestantes] no Centro e na Zona Sul a sociedade se indigna, mas quando a OAB vai para a Maré participar do protesto contra os 10 mortos durante uma operação policial ela é criticada. Essa é uma sociedade racista”, defende.
Mortes não investigadas
Além da quantidade de mortos, outros dados resultantes da pesquisa são alarmantes. No ano de 2007 tivemos o maior pico de mortes decorrentes de confronto com a polícia, contabilizando 1330 vítimas em todo o estado, e 902 apenas no município do Rio de Janeiro. Após esse ano o número de mortes cai, enquanto o número de desaparecidos aumenta. Até 2007, segundo informações repassadas pelo Estado, cerca de 60% dos desaparecidos retornavam a seus lares. Após essa data o Estado muda a forma de operacionalizar esses dados, e não temos mais a porcentagem de retorno.
Entre 2005 e 2007 foram instaurados 707 casos de auto de resistência com autoria reconhecida, desses foram obtidos registros de 510, mas apenas 355 viraram inquéritos policiais. Só 19 foram encaminhados para a justiça, 16 foram arquivados, três denunciados pelo Ministério Público, dois pronunciados (denúncia aceita pelo juiz) e apenas um foi julgado pelo júri, resultando em condenação. Sobre esse quadro, Misse diz que a maioria dos casos não é investigada, que não há nem perícia, e afirma: “Não uso a palavra impunidade, isso seria um exagero. Nós não sabemos o que aconteceu. Os sistemas da Polícia Civil, do Ministério Público Estadual e dos tribunais não conversam entre si”.
Memória
Não é de hoje que mortes e desaparecimentos de suspeitos tomam espaço nas páginas de jornais do Rio de Janeiro. Em 18 de novembro de 1884 o caso de Castro Maltta causou um alvoroço na imprensa da época. Foi publicado no Jornal do Commercio que Castro Malta, “desordeiro conhecido na Praça da Constituição”, havia sido preso por perturbar o sossego público. Seis dias depois o mesmo jornal publicava em sua sessão de obituários o sepultamento de um Castro Mattos. A família, preocupada com o desaparecimento de Maltta, procurou o jornal O Paiz, com a suspeita de que o Castro Mattos que havia sido enterrado poderia ser seu parente. Começou então uma série de exumações e diferentes versões – ora Malta era um capoeirista e desordeiro, ora Malta era um pacato trabalhador – publicadas nos jornais. Ao final nunca foi esclarecido de quem era o corpo enterrado e onde estava o corpo de Carlos Maltta. O caso até virou tema para um conto de Aluísio Azevedo, publicado em seu folhetim A Semana.
Marcelo Chalréu, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, vê também uma semelhança entre o grande número de mortes por auto de resistência e de desaparecidos com o período da ditadura militar: “Há uma correlação entre o Estado ditatorial e a democracia repressora, só que agora sofisticaram o desaparecimento. Me causa espécie a não regulamentação até hoje do crime de desaparecimento forçado.”
Paulo Jorge Ribeiro, sociólogo da PUC do Rio de Janeiro e um dos organizadores da pesquisa sobre mortos e desaparecidos, é preciso recorrer à psicanálise para entender o descaso da sociedade: “Se um indivíduo não se responsabiliza por suas ações ele vira um cínico. E nossa sociedade, se responsabiliza?”, pergunta. Para ele, nossa sociedade é estruturalmente desigual e racista, onde alguns indivíduos são tão invisíveis que não são considerados nem como “não cidadãos”.
Paulo afirma que existe uma ideologia que defende que somos um país pacífico, ideologia essa que ignora todo o sangue que correu no país entre os séculos XVIII e XIX, e continua a correr até hoje. “Creio que enfrentar a memória é compreender, é enfrentar nossos próprios fantasmas. Olhe para nossos países vizinhos e veja como eles tratam a memória do período ditatorial, o cinema chileno e argentino são bons exemplos disso”, afirma.
A história do Brasil é cheia de esquecimentos. Até hoje não resolvemos muitas questões problemáticas e violentas do nosso passado, como por exemplo a escravidão, a Guerra do Paraguai, Canudos, e mais recentemente os crimes da Ditadura Militar. São muitos os casos que, por não serem problematizados, se refletem até hoje nas contradições da nossa sociedade. É urgente que se discuta a militarização das polícias, que se reforme os protocolos de ação policial e que se fortaleça o sistema judiciário, senão, continuaremos a ser o país onde todos podem acabar como o Amarildo, principalmente os jovens negros, pobres, moradores de favelas e demais espaços populares.
A OAB/RJ lançou no dia 27 deste mês a campanha “Desaparecidos da Democracia”, em que divulga o resultado da pesquisa comandada pelo sociólogo Michel Misse, da UFRJ, cujos resultados mostram que mais de dez mil pessoas foram mortas sob suspeita de confronto com a polícia fluminense entre os anos de 2001 e 2011. O objetivo da campanha é pressionar o Estado a divulgar os dados sobre essas mortes para que seja formado um banco de dados com todas as informações, desde o nome dos policiais envolvidos até depoimentos de parentes das vítimas. Esses dados serão analisados por uma equipe multidisciplinar para posteriormente criar propostas para definir os protocolos de ação policial, melhorar o sistema de Justiça Criminal e, com isso, fortalecer a democracia.
Segundo Michel Misse, a polícia fluminense mata mais do que a de muitos países. Nos Estados Unidos, onde a polícia é conhecida pela truculência, são mortos anualmente em confronto uma média de 300 pessoas para uma população de aproximadamente 314 milhões (uma morte para cada 1.050.000 pessoas). Já no Rio de Janeiro são mil mortes para 16 milhões de habitantes (uma morte para cada 16.000 pessoas). Misse afirma que nem mesmo em outros países latino-americanos com violento histórico de guerras civis e tráfico de drogas, como Colômbia e México, isso ocorre. Para o sociólogo, a falta de indignação da sociedade frente a esse quadro causa tanta preocupação quanto os próprios dados.
O Superintendente Estadual de Igualdade Racial, Marcelo Dias, disse que o resultado da pesquisa aponta para o racismo existente no Brasil, já que a maior parte dos mortos em suspeita de confronto com a polícia e os desaparecidos é composta de negros, jovens e pobres. “Hoje como a PM faz o que fez [contra os manifestantes] no Centro e na Zona Sul a sociedade se indigna, mas quando a OAB vai para a Maré participar do protesto contra os 10 mortos durante uma operação policial ela é criticada. Essa é uma sociedade racista”, defende.
Mortes não investigadas
Além da quantidade de mortos, outros dados resultantes da pesquisa são alarmantes. No ano de 2007 tivemos o maior pico de mortes decorrentes de confronto com a polícia, contabilizando 1330 vítimas em todo o estado, e 902 apenas no município do Rio de Janeiro. Após esse ano o número de mortes cai, enquanto o número de desaparecidos aumenta. Até 2007, segundo informações repassadas pelo Estado, cerca de 60% dos desaparecidos retornavam a seus lares. Após essa data o Estado muda a forma de operacionalizar esses dados, e não temos mais a porcentagem de retorno.
Entre 2005 e 2007 foram instaurados 707 casos de auto de resistência com autoria reconhecida, desses foram obtidos registros de 510, mas apenas 355 viraram inquéritos policiais. Só 19 foram encaminhados para a justiça, 16 foram arquivados, três denunciados pelo Ministério Público, dois pronunciados (denúncia aceita pelo juiz) e apenas um foi julgado pelo júri, resultando em condenação. Sobre esse quadro, Misse diz que a maioria dos casos não é investigada, que não há nem perícia, e afirma: “Não uso a palavra impunidade, isso seria um exagero. Nós não sabemos o que aconteceu. Os sistemas da Polícia Civil, do Ministério Público Estadual e dos tribunais não conversam entre si”.
Memória
Não é de hoje que mortes e desaparecimentos de suspeitos tomam espaço nas páginas de jornais do Rio de Janeiro. Em 18 de novembro de 1884 o caso de Castro Maltta causou um alvoroço na imprensa da época. Foi publicado no Jornal do Commercio que Castro Malta, “desordeiro conhecido na Praça da Constituição”, havia sido preso por perturbar o sossego público. Seis dias depois o mesmo jornal publicava em sua sessão de obituários o sepultamento de um Castro Mattos. A família, preocupada com o desaparecimento de Maltta, procurou o jornal O Paiz, com a suspeita de que o Castro Mattos que havia sido enterrado poderia ser seu parente. Começou então uma série de exumações e diferentes versões – ora Malta era um capoeirista e desordeiro, ora Malta era um pacato trabalhador – publicadas nos jornais. Ao final nunca foi esclarecido de quem era o corpo enterrado e onde estava o corpo de Carlos Maltta. O caso até virou tema para um conto de Aluísio Azevedo, publicado em seu folhetim A Semana.
Marcelo Chalréu, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, vê também uma semelhança entre o grande número de mortes por auto de resistência e de desaparecidos com o período da ditadura militar: “Há uma correlação entre o Estado ditatorial e a democracia repressora, só que agora sofisticaram o desaparecimento. Me causa espécie a não regulamentação até hoje do crime de desaparecimento forçado.”
Paulo Jorge Ribeiro, sociólogo da PUC do Rio de Janeiro e um dos organizadores da pesquisa sobre mortos e desaparecidos, é preciso recorrer à psicanálise para entender o descaso da sociedade: “Se um indivíduo não se responsabiliza por suas ações ele vira um cínico. E nossa sociedade, se responsabiliza?”, pergunta. Para ele, nossa sociedade é estruturalmente desigual e racista, onde alguns indivíduos são tão invisíveis que não são considerados nem como “não cidadãos”.
Paulo afirma que existe uma ideologia que defende que somos um país pacífico, ideologia essa que ignora todo o sangue que correu no país entre os séculos XVIII e XIX, e continua a correr até hoje. “Creio que enfrentar a memória é compreender, é enfrentar nossos próprios fantasmas. Olhe para nossos países vizinhos e veja como eles tratam a memória do período ditatorial, o cinema chileno e argentino são bons exemplos disso”, afirma.
A história do Brasil é cheia de esquecimentos. Até hoje não resolvemos muitas questões problemáticas e violentas do nosso passado, como por exemplo a escravidão, a Guerra do Paraguai, Canudos, e mais recentemente os crimes da Ditadura Militar. São muitos os casos que, por não serem problematizados, se refletem até hoje nas contradições da nossa sociedade. É urgente que se discuta a militarização das polícias, que se reforme os protocolos de ação policial e que se fortaleça o sistema judiciário, senão, continuaremos a ser o país onde todos podem acabar como o Amarildo, principalmente os jovens negros, pobres, moradores de favelas e demais espaços populares.
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